No Estadão: Governo pode inviabilizar verbas para a ciência com demora na liberação, dizem entidades

André Shalders, O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA – O governo de Jair Bolsonaro pode inviabilizar o uso das verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (FNDCT) se continuar adiando a liberação do dinheiro, segundo entidades ligadas à área de ciência. Como mostrou ontem o Estadão, o presidente da República ignorou uma lei aprovada pelo Congresso ao sancionar o Orçamento de 2021, retendo R$ 5 bilhões destinados ao fundo.

O dinheiro foi para a chamada “reserva de contingência”, algo proibido pela Lei Complementar 177 de 2021, promulgada em março. A reserva é uma rubrica orçamentária usada pelo governo para guardar recursos de modo a atingir a meta de resultado primário – e significa que o dinheiro não chegará aos pesquisadores. O congelamento de recursos tem afetado até mesmo as pesquisas relacionadas à Covid-19.

Reconhecendo a situação de ilegalidade, o governo enviou recentemente ao Congresso Nacional dois projetos de lei liberando parte do dinheiro. Os PLNs 6 e 8 de 2021 destinaram R$ 1,88 bilhão para o financiamento de pesquisas científicas feitas por empresas privadas e R$ 415 milhões para os testes clínicos de vacinas brasileiras contra a Covid-19.

Hoje há R$ 2,7 bilhões congelados no fundo e que não poderiam estar retidos. Organizações como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) agora planejam acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) para garantir a liberação do dinheiro.

Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu Moreira explica que a maior parte do dinheiro liberado, R$ 1,88 bilhão, provavelmente não será usada: a verba foi destinada à Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), uma empresa pública brasileira que faz empréstimos para a inovação no setor privado. A taxa de juros cobrada pela Finep, no entanto, é maior que a de linhas de crédito similares em outras instituições, como o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES). Por isso, não há demanda por estes empréstimos da Finep.

“Isto não nos interessa, no momento. A Finep já está com mais de R$ 6 bilhões (R$ 6,8 bilhões) em caixa para emprestar para os empresários, e não há demanda. Então, este recurso, em grande parte, está parado. O Ministério da Economia alocou estes R$ 1,8 bilhão à revelia do Conselho Diretor do FNDCT”, explica Ildeu.

O presidente da SBPC frisa a necessidade de liberação dos chamados “recursos não reembolsáveis”, aqueles que vão diretamente para pesquisadores e centros de pesquisa – com exceção dos R$ 415 milhões para as vacinas contra a Covid-19, nada mais foi liberado nesta rubrica. “São recursos para a infraestrutura das universidades, para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), para os Fundos Setoriais”, diz ele ao Estadão.

Luiz Davidovich é presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo ele, congressistas de diversos partidos apresentaram emendas durante a votação do PLN 8 de 2021 para mudar a destinação dos recursos – as emendas, no entanto, foram rejeitadas pelo relator, o senador e líder do governo no Congresso Eduardo Gomes (MDB-TO). “Nós estamos pensando em entrar no Supremo (Tribunal Federal), porque a lei está sendo descumprida”, diz. Agindo de forma independente das entidades, o Diretório Nacional do PT (Partido dos Trabalhadores) formulou na semana passada uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) no Supremo Tribunal Federal, pedindo a liberação das verbas do Fundo.

“O outro ponto é que a lei diz que cabe ao Conselho Diretor do FNDCT definir a destinação dos recursos. Então, o fato do Ministério da Economia começar a retaliar o FNDCT e dar destinação (ao dinheiro) também vai contra a lei. Porque quem tem que decidir esta destinação é o Conselho Diretor, que inclui representantes das empresas, da comunidade científica, da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), de vários ministérios. Isso também está sendo desrespeitado”, explica o presidente da ABC.

Tanto Davidovich quanto Ildeu Moreira, da SBPC, dizem que, ao não liberar o dinheiro, o governo pode acabar inviabilizando o uso dos recursos por parte dos pesquisadores. “Se esse recurso não for liberado rápido, considerando a situação da ciência e da inovação no país, isso vai ser dramático. Se o dinheiro for liberado no dia 30 de dezembro, não adiantará de nada, porque não dá para gastar em um dia. O recurso precisa ser liberado logo, para sanar as dificuldades da pesquisa”, diz Davidovich.

“Há consciência da parte do Congresso e do governo de que o contingenciamento (do dinheiro do FNDCT) é ilegal. Na última reunião do Congresso, para tratar da apreciação de vetos e da votação de PLNs, eu alertei o líder do Governo no Congresso, o senador Eduardo Gomes (MDB-TO), de que era preciso descontingenciar. Ele disse que tinha consciência disso e que o governo ia fazer. Não deu data, mas é urgente que o faça, porque o governo está cometendo uma ilegalidade”, diz o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da Oposição na Câmara.

O líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes, diz que a liberação dos recursos está em andamento e não demorará. “A liberação será gradativa e está andando bem”, disse ele ao Estadão, por mensagem de texto. “Sei que é difícil, mas estamos estabelecendo uma nova rotina que vai evitar esse problema no futuro”, disse o congressista tocantinense. A “nova rotina” a que ele se refere é o não contingenciamento dos recursos do FNDCT nos próximos anos, segundo explicou.

Fundo financeiro

Entidades como a ABC e a SBPC integram hoje a Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP) – um grupo de pressão cujo coordenador executivo é o ex-deputado federal e ex-ministro da Ciência e Tecnologia Celso Pansera. Ele comandou a pasta entre 2015 e 2016, no governo Dilma Rousseff. Pansera diz que o caso deve ser judicializado pelas organizações, a despeito da ação movida pelo PT. “As entidades estão preparando a sua própria ADI. Para obrigar o cumprimento da lei”, diz ele.

O ex-ministro explica que a inovação mais importante da Lei Complementar 177 de 2021 foi transformar o FNDCT num “fundo de natureza financeira” – hoje, este status só é garantido ao FNDCT e ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). A mudança significa que o dinheiro não utilizado no FNDCT será depositado numa conta bancária, para ser investido. Os rendimentos ficam com o Fundo. “Isto significa que, com o passar dos anos, nós vamos ter um fundo com um fôlego muito grande. Vai acumular recursos e vamos ter um fundo poderoso para financiar a ciência”, diz Pansera.

O ex-ministro diz que há projetos prontos precisando de financiamento que somam R$ 5 bilhões “Na subvenção, a demanda é enorme. Tem demanda para R$ 5 ou R$ 6 bilhões em projetos, que poderiam ser imediatamente desembolsado”, diz ele.

Fonte: Jornal Estadão

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